sexta-feira, 1 de abril de 2016

SOBRE BARBAS, BATONS E PORTAS SE ABRINDO

Quando a cortina se abriu, o primeiro arrepio bailou no meu corpo. Minhas veias se fecharam, enrubesci sob a luz vermelha. Infinitamente sozinho e perdidamente incompreendido pela névoa branca que cobria todo o palco.
O silêncio quase físico vindo dos bancos vazios da plateia aguçou meus sentidos. Cada pelo de minha barba espetava violentamente o meu rosto enquanto o tecido branco do meu vestido acariciava suavemente a minha pele. Senti o batom vibrar em cor por sobre os meus lábios; o rímel puxando meus cílios.
Houve um sinal e então a música começou. A primeira batida drasticamente chutou meu estômago, de modo que o meu corpo jogou-se para trás. Encolhi-me defensivamente. Em vão.
A segunda batida levou-me para o lado direito. Em um quase rodopio, percebi assustado, embora não surpreso que deixara de me pertencer por completo, como eu sabia que aconteceria tanto mais cedo ou tarde.
A batalha havia começado. A música orquestrava o meu corpo que se debatia em movimentos circulares por todo espaço do palco, as mãos teciam pequenos e delicados nós de vento no ar.  
Senti a terceira batida dentro da minha cabeça, uma forte pancada. Quase acostumado àquela dor, respondi, sem mais hesitar, aos comandos de movimento que me eram dados.
Depois de um tempo, se seguiu uma breve pausa. Quando, finalmente, avistei no vazio da plateia os olhos de quem eu esperava. Duas armas apontadas em minha direção. Sucumbi ao prazer de ser observado por Ele, o imperador de todo o meu mundo, coreógrafo de minha dor.
 Fim da pausa.
 A quarta batida me tornou fogo. Desviei os olhos da direção do meu dono e, não suportando o peso do meu corpo por sobre os saltos, caí queimando no chão.
Chamas misturaram-se ao meu sangue. Contorci o corpo. Silenciosamente, gritei. No ritmo da música, minha dança era um pedido de socorro. Oscilava entre a angústia e a combustão como a chama de uma vela oscila na presença de qualquer suave brisa.
Passaram-se ainda três segundos até que então a minha mente se fundiu. E tudo ficou gelado. De repente fui transportado para o meu locus:
o quarto da minha mãe parecia o mesmo de anos atrás. Com atenção e crescente espanto, observei os pequenos detalhes do ambiente, a cama perfeitamente forrada, os travesseiros despojados por sobre o lençol florido. Tudo era paz. Menos aquela voz.
Você sabe que não pode fazer isso, menino. Você sabe que pode ir para inferno, não é? Isso é coisa de menina, você não nasceu menina. Se a mamãe descobre. Ai, eu nem quero ver. Seu pai tem vergonha de você, você sabe disso também. Por isso que ele deixou a mamãe. Ele tem vergonha do filho bichona. Maricona! Maricona! Solta esse batom. Lembra-se da vez que ele te levou para a escola de futebol? Você nem sabia chutar a bola. Qual pai quer um filho assim? Ele tentou dar um jeito em você, mas você veio quebrado, doente. Maricona! MARICONA! Bicha! Veado!
Certifiquei-me de fechar a porta antes de sentar-me em frente à penteadeira. Percorrendo as gavetas meus dedos, apesar dos anos, ainda sabiam onde encontrá-los. O mesmo formato cilíndrico. As mesmas cores. Meu gosto permanecia o mesmo também: sempre vibrante, sempre: Vermelho. Ao menos no espelho, só eu que não era aquele mesmo menino. O da voz que continuava a berrar.
A mamãe tá chegando. Ela vai ver que o papai tinha razão. Você é bicha. Sempre foi.
Bloqueei o pensamento para não borrar o batom por distração. Finalizei, encostando suavemente um lábio no outro. Encarei o espelho: barba, rímel, vermelho da boca.
Passadas no corredor.
Mão na maçaneta.
Porta se abrindo.
Voz da minha mãe.
– Filho!
A quinta batida me levou de volta ao palco. Dessa vez, não havia luz, nem música e as cortinas haviam se fechado diante de mim. Não pude ver os bancos da plateia, mas ainda sentia a desconfortável presença dele. Ele que, na verdade, era eu próprio. Eu, coreógrafo de minha própria dor, orquestrando pérfidos sentimentos.
Eu me fitava: não reconhecia aquela criança que parecia tão bem acomodada em trajes de jogador de futebol segurando, por entre os braços, uma bola.
– Bichona! – Aquele meu outro eu berrou seguramente.
Houve a batida. A música retornou insuportavelmente mais alta. As cortinas se abriram novamente. Foco de luz vermelha por sobre mim.
    Mas dessa vez não houve incêndio. Não houve arrepio e meu corpo não bailou ao som da música. Parado, eu me acolhi. Percebendo-me chave para as portas que eu mesmo havia trancado. Aceitei-me a mim próprio, dando-me, finalmente, o direito de ser barba, batom e bicha.
–Bicha! Doente! Tenho vergonha de você. – permanecia a voz ecoando em vão naquele vão vazio.
Até que tudo foi, gradativamente, tornando-se vento, inclusive ele. Aquele Ele tão distante, tão terceira pessoa, o ele que nunca foi eu.
Desfez-se também o palco. Só sobrou o que de mim sempre foi meu. A porta se rompeu, enfim. Lá fora, outro locus:
A leveza de ser exatamente o que se é produz certo tipo alegre de sentimento. A liberdade única de morar no hall da própria alma, da própria casa, um campo tão conhecido, um paraíso sereno: a minha alma arrumada, a minha casa perfumada, o meu oásis solitário, onde a partir dali eu ficaria me pertencendo até o infinito. 
Nunca tive asas, mas sempre adorei voar. 

2 comentários:

  1. Belo texto, Mateus. Poético, profundo... parabéns!!

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  2. Não dou conta de tanta lindeza, de tanta perfeição, de tanta perspicácia! Muito muito muito muito bom! Lindo de morrer!

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